terça-feira, 3 de julho de 2007

Chamas do Passado

Primeira parte de um conto sobre um dos personagens centrais de Jaraguá do Sul, Hansi Kursch, em busca de respostas sobre seu passado.
Capítulo I

Era uma noite quente de terça-feira, e mal vi quando meu velocímetro marcava mais de cento e dez quilômetros por hora. A velocidade acalmava meus pensamentos, e eu conseguia desfocar das coisas ruins que estavam acontecendo no meu território, na minha vida. Em minha cabeça os sentimentos se misturavam como uma incrível turbulência de emoções. Sentia ódio misturado com saudade da minha vida antiga, me sentia incapaz de proteger os que eu aprendi a gostar, mas me sentia acima de tudo vivo. Mas essa enxurrada de emoções estava me deixando louco,
Demorou vinte minutos para chegar ao meu destino, ao lugar que se projetava como a sombra do meu passado, algo que já fiz de tudo para esquecer, mas que sempre volta a minha mente, me assolando, despertando a curiosidade dentro de mim. Dizem que a curiosidade matou o gato. É nessas horas que dou graças a Luna por ter nascido lobo.
O pequeno barraco parecia infímo perto das construções maiores a minha volta, símbolo de que aquele lugar devia ser enterrado, não só fisicamente, mas também em minhas memórias. Mas eu nunca conseguiria. Foi ali que tudo começou, e eu sei que é ali que eu encontrei minhas respostas. Um dia encontrarei.
As faixas de segurança da policia ainda estão ali, faz anos que “aquilo” aconteceu, mais a área ainda não foi liberada. Estaciono a moto olhando para a casa, e poderoso ronco cessa, deixando a rua no mais absoluto silencio.
O barraco velho está caindo aos pedaços. Musgo verde escuro está grudado por toda parte, um sinal da natureza reclamando o que é seu por direito. A porta está entreaberta, com a madeira despedaçada em vários pontos, formando frestas que possibilitam a visão do escuro impenetrável dentro do lugar. O vento forte bate nas janelas, e a cada batida arranca mais um pequeno pedaço da madeira velha. O cheiro da indústria de usinagem de combustível a aproximadamente um quilômetros dali ainda é forte, deixando o ar carregado e difícil de respirar cada vez que o vento parava.
Ao rever o velho barraco, minhas memórias reviveram como se tivessem vida própria, e se transformam em um turbilhão selvagem que me fez perder o norte.
Conseguia ouvir a voz e sentir o cheiro da minha mãe, o sangue dela nas paredes, as palavras confusas que estavam escritas naquele dia, naquela madeira velha. Minhas mãos foram até o topo de minha cabeça enquanto eu caia de joelhos naquele lugar, sem conseguir me segurar, sem conseguir lutar contra esta vontade. Lágrimas começaram a escorrer pela minha face, lágrimas de dor, contidas dentro de mim por tantos anos, uma angústia incrível era liberada pelos gritos de sofrimento. Tudo parecia como em um filme de drama, quando o filho volta para casa após anos e encontra tudo intacto, mas não existe ninguém a sua espera. O silêncio da casa era interrompido apenas pelos meus gritos, e creio que a vizinhança a essas alturas já deveriam estar estranhando alguma coisa. Tudo era tão confuso, imagens na minha cabeça, memórias

- Solte, solte essas emoções filho da lua. De nada adianta manter isso tudo contido, lhe remoendo, lhe matando -
do dia em que vi aquela cena cena, vozes na minha cabeça,
-Solte, solte essas emoções filho da lua. De nada adianta manter isso tudo contido, lhe remoendo, lhe matando-
ou elas não estariam na minha cabeça? Elas eram ditas na primeira das línguas, e ao me dar conta disso, comecei a me preocupar.
Ponho-me de pé, enchendo os pulmões e assumo minha forma quase humana, falando também na primeira das línguas: - Quem perturba o leito de despedida de minha mãe? Apresente-se ou irá sorver a minha fúria -.
Silencio foi tudo que percebi no minuto seguinte, e então, após uma forte rajada de vento, a doce voz voltou a falar na primeira das línguas: - Acalme-se, jovem lobo. Não há nada que você possa fazer contra mim neste momento, e eu não desejo agir contra você. Pelo contrário, estou aqui para lhe fazer uma proposta. Interessado -? A leveza da voz, quase que feminina, podia ser sentida mesmo usando as palavras guturais da língua antiga. Na frente dos meus olhos, pude notar o ar brilhar levemente na cor prateada.
- Proposta -? Pergunto um pouco mais acalmado pela presença serena. - Que tipo de proposta um ser que viola um lugar sagrado a mim deseja me propor? Apresente-se para podermos negociar como criaturas leais, com olhos no olhos -.
O ar ficava mais e mais gelado a cada palavra que minha boca proferia, roubando o calor de minha pele quase humana. Aos poucos, a pouca luz fornecida pelos postes da estrada começou a diminuir, até cessar quase por completo, e pequenos pontos luminosos começaram a brilhar ao meu redor. Fazia frio, muito frio, mas não era um frio destrutivo, era um frio que acalmava minha alma, que congelava o quente sentimento de fúria e ódio, meu corpo tremia, mas por dentro eu estava sentindo uma grande paz.
A voz novamente falou: - Filho, deixe-me acalmar essa dor que te atormenta, deixe-me tirar esse peso da sua alma. Posso lhe ajudar, se você permitir. Estive esperando seu retorno há muito tempo -.
E no lugar que há instantes atrás existia apenas escuridão, iluminada por uma fraca luz, eu pude perceber um corpo vindo em minha direção, cortando as esferas luminosas no ar. Vinha com uma delicadeza, algo que me recordava, mas não conseguia saber de onde. Quando o corpo chegou mais perto, meu coração queria pular pela garganta. Na minha frente eu vi a face de minha mãe.
- Mãe! - Balbucio em meio a uma torrente de pensamentos que me deixam tonto com um soco no estomago. - Mãe é você? -
- Filho, me responda, queres que eu alivie este peso que carregas? Eu posso lhe ajudar, tenho que lhe ajudar-. A mulher etérea flutua para mais perto de mim, e uma névoa fria já cobre todo o ambiente. Ela se aproxima, e toca meu rosto com sua mão esquerda. Nesta mesma mão, vejo um anel, o anel que guardo comigo até hoje, a ultima lembrança de minha mãe.
- Mãe, eu apenas quero que me expliques o que aconteceu, porque há anos esta noite me assola como a pior da minha vida, um pesadelo que me recorre nas mais tristes noites. Conte-me tudo, para que assim eu possa fazer justiça com quem não foi justo com você-, não consegui continuar falando, pois lágrimas escorrem por minha face.
- Eles me caçavam, filho. Os três Dragões do Paraíso. Eles eram poderosos, e queriam matar-me por ter feito uma coisa proibida por nossa tradição, você... -.
Subitamente, o brilho que me envolvia tornou-se escuridão, palpável e profunda, e o corpo de minha mãe apareceu despedaçado, com a cabeça a alguns metros de mim, jogada ao chão, e sua boca movimentando-se de um jeito que deixaria qualquer outra pessoa louca. Uma voz distorcida e demoníaca era cuspida para fora da mandíbula quebrada, e os olhos dela brilham com um fogo infernal.
- ELES QUERIAM MATÁ-LO, USAR-TE COMO SACRIFÍCIO PARA OS DEUSES, MAS EU NÃO DEIXEI, EU NUNCA DEIXARIA! HANSI AJUDE-ME A DESTRUIR ESSES DESGRAÇADOS, AJUDE-ME A encontrar a paz... Filho.... - A voz aos poucos se acalma, e a cena horripilante desaparece em um piscar de olhos. O brilho dela, que se assemelha a luz da lua minguante continua a minha frente, quase invisível.
Apavorado com a cena que vi, corri em direção a minha mãe, mas trespassei-a ao fazer isso senti um frio descendo pela espinha, virei para ela novamente e com a voz rouca e o corpo trêmulo implorei:
- Por favor, conte-me tudo o que sabe, tudo que me possa ser útil, vingarei sua morte, e descansarás em paz. Por favor, mãe seja rápida -.
- Filho, você está apto a fazer qualquer coisa para vingar minha morte? -
O rosto dela transforma-se, a chama infernal aparece mais uma vez. As mãos dela agarram seus próprios cabelos, e ela começa a tremer. Ela grita de agonia, como se uma dor lacerante penetrasse seu corpo.
- DOR... DOOOOOOOOOR... RESPONDA-ME FILHO, QUALQUER COISA? -
-Sim-
respondo gritando, -qualquer coisa para te livrar dessa existência-.
O corpo etéreo a minha frente ardia em chamas, chamas negras, chamas malevolentes. Pude ver os olhos dela, azuis e limpos, como se estivesses cheios de lágrimas. Ela girava, flutuando em minha volta, e foi quando ela passou novamente por dentro de mim que comecei a sentir o calor queimando meu corpo, minha carne, meus músculos, calor que parecia queimar até os ossos. E então desmaiei.
- Eu vou lhe ajudar a me vingar, filho...- A voz doce ecoa no vácuo da minha mente.
Água fria, gotas de chuva que caem em minha face, lavando minha alma, a sensação de agulhas de água perfurando meu corpo. Sento-me, a chuva encharcando minhas roupas e a lama envolvendo meu corpo. Algo está diferente, posso sentir um calor, uma leveza. Memórias estranhas invadem meus sentidos, vindas das profundezas de uma mente que não é a minha. Há mais alguém comigo em meu corpo, no fundo de minha consciência. E isso não é uma sensação agradável.
Na minha frente o velho barraco de minha progenitora. A porta bate, rangendo com o vento. Cheiro de óleo industrializado paira no ar. Olhando para o céu posso ver Hélios irradiando seu poder, o que me deixa pensando se passei realmente a noite inteira ali. Levanto-me, batendo a poeira da calça, e quando vou até minha moto, sinto uma dor na cabeça, uma pontada aguda. Memórias que não me pertencem. A sensação horrível de ter o corpo dilacerado. Três homens, fogo azul cortante percorrendo as paredes e atingindo meu corpo, o reino dos céus, anjos e demônios... As memórias por enquanto não fazem sentido.
Levo as mãos a cabeça, e sussurro:
-Se queres me mostrar algo, por favor, seja mais precisa, ou me dê uma pista melhor-. Disse enquanto desembarcava da moto.
Entrei novamente no barraco, abri a porta devagar, porque a qualquer momento ela podia se desprender. O cheiro dentro da casa havia mudado, não haviam mais móveis, e nem o sangue de pelas paredes. Ao chegar ao fundo da casa senti outra pontada na cabeça. A minha frente brilhando na parede de madeira podre, vi uma frase escrita em sangue:

Nesta casa foi sacrificada uma transgressora da tradição. Ela escolheu dar a sua vida no lugar da vida do seu filho.

Neste mesmo lugar vejo um homem loiro, de roupas longas e antigas, escrevendo com uma adaga manchada de sangue. Escutei sua voz ecoando em minha mente:

Mova-se Dragão Celeste, não temos tempo para desperdiçar. Logo os atormentados pelo sono eterno estarão aqui e arranjaremos problemas.

Pude ouvir mais duas vozes, vozes que decidiram o destino de minha falecida mãe:
-Filho-. Falou a voz em minha mente. -Os meus executores ainda estão aqui, em Jaraguá. Você deve procurá-los para que possamos dar a eles nossa retribuição-.
-E como poderei achá-los, para libertar sua alma?-
perguntei confuso.
- A Assembléia, deves achar a Assembléia dos Dragões do Céu. Você vai precisar de ajuda, Hansi, eles são muito poderosos, têm ajuda divina-. Preocupação era demonstrada pela voz que agora assolava a sua mente. Eu tentava organizar as memórias dela dentro das minhas, e elas começaram a fazer sentido. - A Assembléia, onde será esse lugar-? A Assembléia, Saint Sebastian, a cor preta. Todas essas informações embaralham-se na minha mente.
Desisti de tentar arranjar alguma informação útil e tentei me comunicar com minha mãe novamente:
- Quão poderosos eles são, e como eu posso achá-los mãe? Me de um sinal, uma luz, algo que me faça entender.
- Eles têm o poder dos céus, filho. Eles têm o controle sobre as energias, o fogo dança sobre o comando dos Dragões do Paraíso. Você ainda não pode entender o que eu era, e nem o que eles são, filho. Tenho sorte por ter você, você ficou forte, poderoso, mas precisa de ajuda, ou vai acabar como sua mãe. -

O esforço para manter para manter o elo com a alma de minha mãe me consumia, corroia minhas forças. A cada momento, o peso de carregar essa alma em meu corpo aumentava.
Achei melhor sair daquele lugar, ir para casa descansar, dormir um pouco, tentar relaxar, ver se conseguia colocar minhas idéias em ordem. Peguei minha moto e rumei em direção a minha casa, para descansar o corpo e a mente.
Abatido e surpreso, rumo para casa, procurando sossego e calma para pensar. Posso sentir a vaga presença de minha mãe em mim, a energia da vontade dela presa em minha mente. O que ela quis dizer com a Assembléia? Dragões do Céu? Mesmo confuso, agora sei que posso achar quem fez isso com minha mãe.

Um lugar habitado por monstros

Sou o lobo que espreita seus sonhos.
Um vulto negro da noite de inverno.
Sonho e pesadelo do mundo moderno.
Porque eu os espreito e condeno-os.
Com uns antigos cinismos risonhos.
Sou o lobo que corre pela sua mente.
Perturbando sua calma calmamente.
Porque eu os destruo e ordeno-os.
Lentamente você não mais existirá.
Sou o lobo que lê suas lembranças.
Sei tudo, ando por meio das mentiras.
Sei tudo, desde sua paixão a suas iras.
Porque eu eliminei as suas esperanças.
Lentamente você não mais amará.
Sou o lobo que não existe em você.
Pesadelo em pesadelo, sou o veneno.
Um novo guerreiro, amor supremo.
Simplesmente matei sem ter um porquê.
Sou o Lobo que caminha em matilha.
Sou voraz, sou uma nova armadilha.


Pelas noites eles espreitam, criaturas com vidas duplas, escondidas por um véu de ignorância que cobre a visão dos humanos. Infestando até mesmo os mais remotos lugares, as criaturas da noite vivem em esquinas fétidas, ou em casarões da alta sociedade. Manipulando a vida humana, como se fossem apenas marionetes participando do espetáculo, mas nunca sendo a atração principal. Bem vindo a um mundo de monstros; bem vindo ao mundo das trevas.